top of page

BALADA

  • lhrocha
  • 25 de mai. de 2004
  • 8 min de leitura

BALADA ¹

A estudante de Administração Mariana*, de 21 anos, dentro de algumas horas estará desmaiada em um quarto de um hospital na zona central de Caxias do Sul, com a sua calça Gucci suja de vômito e com um cateter na veia por meio do qual ela receberá altas quantidades de glicose para rebater o efeito do excesso de álcool. Mariana mal irá se lembrar de, no espaço de horas, ter fumado dois cigarros de maconha, tomado um ecstasy na forma de coração e outro na forma das orelhas do Mickey Mouse, bebido uma garrafa inteira de champanhe Möet et Chandon e ter feito sexo com dois garotos que nunca viu na vida.

“Comigo tem que ser assim mesmo. Tudo aos extremos”, diz a garota, filha de um conceituado advogado. “Gosto de dar para um monte de caras, de misturar Prozac com champanhe, de cheirar cocaína até meu nariz sangrar. E não me importo com a sua opinião moralista, típica da classe média. Tenho dinheiro suficiente para não me preocupar com você ou com mais ninguém. A minha felicidade está na minha conta bancária”, dizia ela enquanto se preparava para a balada.

Mariana faz parte de uma geração escancaradamente frívola e preconceituosa, formada por filhos de gente muito rica. É a “Geração $”, como eles gostam de se definir. Têm a vida inteira pela frente e nenhuma preocupação com assuntos que assombram outras pessoas, como falta de dinheiro ou necessidade de escolha de uma profissão para ganhar a vida.

“Eu sou o tipo de pessoa que os pobres e a classe média odeiam porque posso torrar R$ 5 mil em um vestido para usar apenas uma vez e depois encostá-lo no armário”, diz Mariana. “Não consigo ficar assistindo tevê em casa ou trabalhando em algum escritório estúpido na frente de um computador. Estou acima disso tudo. O dinheiro dos meus pais me possibilita curtir a vida sem preocupações e sem falsos moralismos”.

Ao mesmo tempo em que fala da vida, Mariana manda o motorista do seu Mercedes preto se apressar. O relógio Armani no pulso, avaliado em R$ 2 mil reais, avisa que já passa das 23:00 horas e todos seus amigos devem estar esperando furiosos na frente da casa mais badalada, mais cara e restrita da região. É sábado à noite, e a noite de Caxias nem imagina o que Mariana e seus endinheirados colegas vão aprontar.

“Demorei porque a besta da empregada esqueceu de passar a minha calça Gucci”, brinca a garota com os amigos ao descer do carro. “Definitivamente não dá para confiar em pessoas de cabelo pixaim.” Fernanda*, filha de um banqueiro que mora em Porto Alegre, ri escandalosamente da observação da amiga Mariana. Além de compartilhar da visão do mundo, as duas são fisicamente parecidas. Morenas, baixinhas e superproduzidas. “Empregada é uma droga mesmo”, diz a porto-alegrense de 19 anos que largou recentemente a faculdade de Publicidade e ainda não decidiu o quê estudará a seguir. Ela veste um modelito exclusivo assinado pelo estilista Alexandre Herchcovitch. “Todas as empregadas são ignorantes. É por isso que elas têm de ganhar salário mínimo.”

Fernanda está acompanhada de mais três meninas que aparentam ter a mesma idade e de dois garotos já mais velhos, com mais ou menos 24 anos. Todos têm pais ilustres – duas são filhas de empresários bem sucedidos, a outra é herdeira de um fazendeiro do interior gaúcho, o garoto loiro é filho de político. Apenas um deles é uma incógnita. Seu nome é Antônio*, e sua origem nunca foi colocada em discussão pelos colegas. “Um dia apareceu do nada em uma balada, dirigindo um Audi A3 e com muitos ecstasys no bolso. Não precisou explicar de onde vem para ser incluído na turma” explica Mariana.

A fila na frente da casa noturna começa a aumentar, mas uma nota R$ 100 na mão do segurança é o suficiente para que Mariana e seus amigos a furem. A entrada custa R$ 70,00 para homens e R$ 35,00 para mulheres, mas eles desembolsam mais R$ 100,00 cada um apenas para ter direito a sentar em uma mesa que estaja estrategicamente posicionada em relação aos interesses da turma. “Somos VIP’s, merecemos tratamento diferenciado”, diz Fernanda, enquanto abre uma garrafa de champanhe Möet et Chandon – a primeira de sete que serão consumidas na animada e longa noitada.

Ali na mesa, fica mais fácil para Carlos* disfarçar uma carreira de cocaína que prepara na frente de todo mundo, usando apenas o simples artifício como se fosse sal, para dar gosto a um cálice de tequila que está depositado junto à mesa. Os amigos brincam que ele tem o nariz nervoso, não consegue ficar um dia sequer longe do pó. Fernanda percebe o gesto e corre para filar um pouco da droga enquanto Mariana, do outro lado da balada, amassa a roupa cuidadosamente escolhida com um rapaz mais velho que acabara de encontrar.

Depois de duas horas e R$ 990,00 gastos em bebidas, o grupo decide deixar a balada e procurar algum outro lugar para terminar a noite. Ou melhor, para começá-la de fato. “Vamos para a minha casa, hoje não tem ninguém lá, meus pais estão viajando”, sugere Fernanda. “Podemos comprar umas bebidas, ligar para uns amigos e fazer a festa lá mesmo. Com quantas pessoas será que eu vou transar hoje?”

A idéia de Fernanda até que foi comportada para os seus padrões. Da última vez que convidou os amigos para ir até a sua casa na zona leste da cidade – uma mansão com três salas, sete quartos, duas cozinhas, um pátio na parte dos fundos com a piscina, uma edícula destinada aos hóspedes dos donos da casa e, num canto, um canil, abrigo de três cães, dois deles belíssimos huskies siberianos –, ela pagou três prostitutas e dois garotos de programa para animar a reunião. De outra vez, fez uma vaquinha e comprou 100 gramas de cocaína. Os amigos da garota contam que ela, numa das baladas que deu, fez sexo com três amigos de infância na piscina, ao mesmo tempo, enquanto os vizinhos viam e ouviam tudo.

São quase três horas da madrugada e os carros começam a se enfileirar na porta do número 32.482. Em pouco tempo, há cerca de 20 jovens no local. Todos da turma são muito parecidos – os garotos vestem camisa de algum estilista famoso e caro, Herchcovitch, Sommer ou Haten, e calça jeans igualmente exclusiva, mas que pareça estar bem suja. Já as meninas só usam preto, sempre de marca estrangeira, e não desgrudam de suas bolsas abarrotadas de maconha e, eventualmente, camisinhas.

Para deixar as meninas mais “soltinhas”, os garotos preparam um drink especial com vodca, suco em pó light e comprimidos de ecstasy picados em pedacinhos microscópicos. Quando elas se derem conta, já estarão dançando coladinhas e dando beijos calientes umas nas outras, no meio da sala decorada com uns poucos móveis antigos, de estilo europeu.

Para a maioria delas, não faz a menor diferença saber se tomaram drogas misturadas à bebida porque a intenção é ficar doidas mesmo. “Essas garotas aí estão loucas para dar”, aponta o estudante de Administração Thomas*, de 21 anos, herdeiro de um médico famoso e amigo de longa data de Fernanda. “A única coisa que elas têm para fazer na vida é gastar o dinheiro da família. As mais novas, aliás, são as mais danadas. Eu, por exemplo, transei com muita menininha filha de ‘sei-lá-quem’ dentro do meu Civic ou em banheiros de baladas. Já ‘tracei’ muitas Lolitas Pilles por a”í.

Thomas se refere à escritora francesa de 19 anos, que chocou o mundo ao descrever tudo o que se passa no mundinho milionário de Paris no seu livro de estréia, Hell. A tradução em português chegou às livrarias do Brasil no final de 2003 e vem ocupando lugar de destaque nas prateleiras das livrarias. Nascida em berço de ouro, Lolita Pille passou boa parte de sua vida torrando o dinheiro dos pais, desrespeitando regras de trânsito e dançando até de manhã nas boates.

Quando se cansou da farra, a garota escreveu as 224 páginas do livro. "A 200 km/h pelas ruas de Paris, onde não é bom caminhar quando estamos no volante, misturamos álcool com cocaína e cocaína com ecstasy", escreve. "Eu sou um produto da Think Pink Generation. Minha crença: seja bela e consuma. Sou a musa do deus 'Aparência', sob o altar do qual eu queimo alegremente todo mês o equivalente ao seu salário".

Os relatos de Lolita poderiam muito bem ter sido escritos pela caxiense Mariana, pela amiga Fernanda, ou por qualquer uma das meninas que dançam e se beijam sem blusa na sala de estar da casa de piso de mármore claro da Zola leste caxiense. “Entrei numa boate aos 14 anos e nunca mais sai”, confessa a escritora francesa em Hell, numa de suas muitas tiradas infanto-niilistas. “De qualquer maneira, o que fazemos é vergonhoso. (...) E daí? É você quem paga a conta? Enfim, por hora está bom para mim. Minha única preocupação é o vestido que vou usar hoje...”

O uso de drogas na mansão de Fernanda é tão disseminado que até cinzas de cigarro chegam a ser confundidas com cocaína. Num canto da sala, três caras dividem uma pedra de ice, droga sintética, derivada da anfetamina, que parece um cubo de gelo, sem se importar com a presença de algum estranho. Noutro, duas adolescentes que não aparentam ter mais de 15 anos cheiram B-25, ou cloreto de metileno, mais conhecido como cola de acrílico. E isso sem falar nas cápsulas de efedrina, de efeito estimulante, oferecidas como se fossem balas de goma.

Mariana, então, já usou e abusou de tudo nesta festa. E mesmo assim ela ainda quer mais. Em uma só tacada, engole dois comprimidos de ecstasy que estavam jogados em cima da bancada americana, plantada no meio da espaçosa cozinha principal, toda equipada com eletrodomésticos em aço inox. Um comprimido é rosa na forma de coração e o outro azul na forma das orelhas do personagem Mickey Mouse. “Tô bem, tô bem, ainda tô sóbria”, balbucia, pouco antes de tropeçar em uma cadeira e cair estatelada no chão.

Dois caras levantam Mariana e carregam o seu corpo praticamente inanimado para uma das suítes do primeiro andar da casa. É o quarto dos pais de Fernanda. Mariana acorda e puxa os dois garotos desconhecidos para a cama, tira as calças e começa a fazer sexo sem se preocupar com os olhares curiosos dos que estão olhando pela porta aberta. O show não dura muito tempo – minutos depois, Mariana levanta correndo e tenta chegar até o banheiro. Em vão. Ela acaba vomitando em cima de um dos garotos, no piso de mármore. Vomita tanto que sai até bile.

“Sério que eu fiz tudo isso mesmo?”, perguntaria Mariana mais tarde, enquanto deixava o quarto do Hospital Pompéia. O braço direito até doía de tanta glicose que foi injetada na sua veia. Com olheiras enormes, sua amiga Fernanda só tinha forças para responder afirmativamente com a cabeça. “Que saco! Eu sempre apago nos melhores momentos. Mas tudo bem, semana que vem tem mais. Fê, você tem certeza que não foi um plantonistazinho de merda que me atendeu? Porque esses residentes não sabem de nada, nem imaginam de quem eu sou filha, ganham uma merreca... Não posso ser atendida por um imbecil qualquer.”

* Nomes fictícios.

Luiz Henrique da Rocha

25/05/2004

15:24 horas

¹ Ao contrário do que diz o Aurélio - Antigo gênero de poesia popular, originário dos países do Norte europeu, e que narra uma lenda popular. Balada, no linguajar “tupiniquim/aborrecente” significa, festa, alegria, descontração, local onde os amigos que comungam das mesmas idéias e costumes se encontram para passar horas juntos.


 
 
 

Comments


Featured Posts
Recent Posts
Archive
Search By Tags
Follow Us
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page