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LEMBRANÇAS

  • lhrocha
  • 20 de mai. de 2004
  • 5 min de leitura

Lembranças

Ele foi um menino normal, nunca um menino mimado, mas um menino ao qual seu pai contava sucessivas e inebriantes histórias, noite à noite e quando este menino adormecia, os braços de seu pai, já fustigados pelo tempo e pelas mazelas do dia a dia o conduziam a um berço, onde o esperava um colchão de palhas de milho, feito lá no galpãozinho, “no fundo do lote”.

Ele foi um menino que nasceu sonhando, sonhando com o dia de amanhã, com o crescimento, foi um menino...que talvez tenha nascido em uma época diferente da que tivesse sido “programado”, foi um menino que teve, talvez um defeito de origem, o de ser sonhador, o de ser motivado por objetivos, mesmo que estes o fossem “virtuais”, mesmo que quase em sua totalidade, simples mortais não consigam se quer entender os objetivos a serem alcançados...

Foi um menino que sonhava com um carrinho de lata, que sonhava em poder ir para à escola guiado pela mão de seu pai, que sonhava em ao sair desta, no final do período... lá estivesse ele, cabelos grisalhos, bigode bem aparado, sorriso estampado nas faces e que o levasse de volta ao seu lar, sonhos simples, modestos, talvez até acanhados para um menino, um simples menino que sonhava ter sua primeira aprovação escolar, sonhava caminhar pelas ruas estreitas de Caxias do Sul, ainda na década de sessenta, e poder sentir o orgulho de ler as primeiras palavras escritas em anúncios das então chamadas "casas de comércio".

Foi um menino que sonhava em escrever as façanhas que seu pai contava a um compadre seu... coisas de caçadas, de cachorro vira-lata.... coisas de cavalos bem encilhados.... agruras de tropeiros maltratados pelo inverno nas coxilhas do Rio Grande do Sul...

Foi um menino que pensou.... pensou poder entrar amparado por seu pai em uma velha igrejinha de madeira... fazer a primeira comunhão... a crisma.... celebrar, as simples etapas que um menino normal percorre em sua trajetória antes de ser considerado um homem de verdade, pensou poder ouvir os conselhos naturais que um pai passa ao seu filho, pensou poder contar com a sabedoria de seu ídolo nos momentos mais difíceis, pensou... pensou.... sonhou......

Sonhou que quem sabe seria o filho de Clarck Kent, sonhou que seu pai poderia ter sido extraído da criptonita, que ele tivesse o poder de fazer o mundo rodar ao contrario se preciso fosse, normalmente, como um simples menino, sonhou.... sonhou e sonhou, em ter com quem dividir, principalmente as suas alegrias, os seus sucessos as suas descobertas, conquistas e vitórias.... sonhou....

E abruptamente foi acordado, passando dos sonhos de um menino a realidade... a realidade de ver em um instante seu ídolo, seu Super Man, aquele o qual julgava ser imortal.... render-se humildemente a ela, ver a última lágrima correr em seu já pálido rosto, ver o último estremecer de suas mãos, a última tentativa de balbuciar alguma palavra perdida em seu subconsciente... foi acordado pela realidade, pela dura e triste realidade de deixar de ser um menino, de deixar de ter sonhos normais, para assumir a verdadeiros pesadelos, para preocupar-se com o pão nosso de cada dia, deixou de jogar bolas de gude para capinar o lote, de correr em vão atrás dos pássaros, para plantar o alimento de amanhã, de fazer e empinar as pandorgas, para rachar a lenha que o iria aquecer nas longas noites de frio...

Deixou de ser um menino, embora ainda o fosse, deixou de pensar em doces para preocupar-me com a vida política de seu País, deixou de brincar de esconde-esconde, para literalmente esconder-me da crueldade da dita revolução, ou golpe militar

Deixou de ser um menino, agüentou sozinho a dilacerante dor de entrar para a primeira comunhão sem a presença dele, de ter a primeira aprovação escolar e de ver seus boletins serem assinados por um irmão mais velho ou pelas trêmulas mãos de sua angustiada Mãe.

Deixou de ser um menino para ter de ajudar a sustentar o seu lar, mas não tinha deixado de ter sonhos, não tinha deixado de ter objetivos, marcados no horizonte, quase como se tentasse passar por debaixo do arco-íris, e sonhou.....

Hoje.... hoje, em uma decrescente natural, como se estivesse em uma gangorra, quase um ancião, um ancião de pouco mais de quarenta anos de idade, alguém que tem a satisfação de ver cumpridos os seus caminhos, de ter alcançado as metas a si determinadas, mesmo que assim não o seja visto pelo prisma dos que o rodeiam, de ter entregado a última tarefa, hoje sentindo, quem sabe a proximidade do último sonho, nem sabe mais se este é um sonho ou talvez o simples arremate final de uma jornada... sonhou, cresceu, estudou, trabalhou, acertou, errou, errou, errou, e errou muito como qualquer mortal erra, mas sente a satisfação do dever cumprido, e como já disse o poeta Mário Quintana “...existe uma época na vida em que ou se está morto ou simplesmente se está vivo...” e crê estar chegando a uma destas definições.

Sente o sabor do dever cumprido, o aroma dos louros da chegada, o doce gosto da vitória final, sinte a proximidade de todos aqueles que já foram queridos, sente a brisa do campo, como aquela que sopra na estradinha que leva ao paraíso, a mesma que corta as coxilhas de Tainhas com destino a Contendas...

Sente o cheiro da terra molhada, do que um dia já foi um torrão.... pó e hoje é barro, sinte o transcurso natural das “coisas”.... sinte a decadência normal, causada pelas derrotas, as cicatrizes mal curadas das batalhas invisíveis, as dores das quedas que ninguém jamais viu ou notou... a tristeza das vitórias que não foram jamais compartilhadas, ou quem sabe até desprezadas...

Em um flash escuta vozes.... discursos de campanhas, ... tem o prazer e a satisfação de ter escutado, mesmo que quase sem nada entender,... as falas de JG de Araújo Jorje, de Ulisses Guimarães, de Miguel Arraes, de Luiz Carlos Prestes, de Franco Montoro, do Dr. Ordovaz... do Alaor.... sente no ir e vir da propagação das ondas de uma broadcasting da capital, ouvir os debates de Ildo Meneguetti ao Governo do Estado... e nesta mesma broadcasting, os artigos de um Ato Institucional, silenciarem a voz de um povo... sente o prazer e a sensação de ouvir Dante Andreis comentar um “tento” narrado por Adelar dos Santos Neves, sente as arquibancadas de madeira da velha e inesquecível Baixada Rubra balançarem literalmente após uma inebriante jogada de do “meia” Techio..... sente o amargo gosto da primeira goma de mascar... no primeiro matinê que freqüentou em sua vida, junto ao antigo Cinema Guarany, amargo pelo fato deste marco não ter sido acompanhado por quem sonhava ser....

Tudo isso passa por seus pensamentos como um verdadeiro cometa... que sempre traz de volta a realidade, e a cada dia que passa, vê-se mais e mais perto dela, vê-se frente a frente com o criador, pronto para quem sabe o acerto final, com a sensação e a alegria de ter enfrentado e cumprido todas as tarefas a sí designadas, desde a mais difícil, ........perdida em uma noite de primavera do ano de 1968, até a última e mal dormida que passou

Luiz Henrique da Rocha

20 de maio de 2004


 
 
 

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